segunda-feira, 7 de junho de 2010

Dúvida

Como não entendo a lógica das ruas do Recife muito menos a falta de placas para orientar meu percurso (não adianta pensar em GPS, seria até pior), cheguei atrasada numa reunião do trabalho. Pode parecer óbvio o caminho entre a Agamenon Magalhães e o Centro de Convenções. Mas não é. Nada de seguir em frente o tempo todo.
Foi se desorientar, perdeu o lugar. Fiquei sobre meus inchados pés, num salto nada confortável, morta de vergonha, durante um bom tempo. Ao longe, ele. Um senhor magro, alto, de cabelos finos, olhos já puxados pelo tempo. Camisa branca, sapato branco. Ar de bom aluno e postura tranquila. Um dos melhores amigos do meu pai quase do lado dele. Uma bolsa na cadeira da frente. Tudo isso do outro lado. Precisaria atravessar entre as cadeiras. Eu, meu visual nada formal e minha mochila enorme e pesada. Afinal, tudo que é enorme precisa de peso para justificar seu tamanho.
Tomei coragem.
Sentei bem na frente dele. Eu e a mochila pesada. Dentro dela, além da agenda e outras coisas, meu adorado exemplar do Livro dos Seres Imaginários, de Borges. Não era o dele. O dele, eu tentei autografar quando a filha dele trabalhou com minha mãe. Tirei o livro da bolsa. Comecei a mexer como quem procura algo e não quer achar nada. Quase virei o danado do livro para ver se ele me cutucava e entabulava conversa. Nada. Hora de risos coletivos. Olho para trás. Os olhos puxados do tempo sorriem junto com a boca. Era quase a lua crescente, o gato de Alice.
E eu lá. Falo, não falo. Peço, ou não peço.
"Oi, tudo bem? Desculpa incomodar mas queria mostrar pros meus filhos, sabe? Eles ainda não existem mas vão, um dia. Antes tarde do que nunca e agora com o avanço da ciência, né? as mulheres podem escolher melhor. Até porque divórcio é um nó incrível. Deve ser muito doloroso"
Não. Não peço. Ou peço.
"Gosto muito de Borges. Tenho um livro do senhor. Aquele. Isso. Comprei assim que foi chegou nas livrarias. Saí de Olinda, de ônibus, para ir a Boa Viagem. Dois coletivos cheios sob Sol. Mas tá em casa. O senhor poderia autografar este daqui? Ele é um clássico latino-americano, grande incentivador da leitura"
Melhor. Peço.
Acaba a reunião e Ariano Suassuna sai discretamente. Pego minha agenda e vou resolver minhas coisas, com a mochila pesada e Borges dentro, quietinho, quietinho. Sem nenhum risco. Quem sabe aproveito para dar de presente e economizar algum trocado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário