sexta-feira, 16 de julho de 2010

O que fazer em caso de

Já estava com 16 anos e não via graça nenhuma em plantar árvores. Filhos, demoraria ainda. Precisava começar a pensar no livro. Vai que morre ao atravessar a rua? Morte por distração. Seria bem seu fim.
Foi pesquisar, decisão já tomada.
A livraria organizava tudo por ordem alfabética, não por assunto. E era enorme. Sem fim. Ela ficou deslumbrada com aquele tamanho todo. Depois, pensou que, ao voltar ali, talvez achasse o lugar menor. Então, talvez não fosse o tamanho. Fosse os tons avermelhados das paredes. A impressão vermelha daquilo tudo. Não usava muito vermelho. Então, por quê? Era momento. Deveria ser momento.
Aquela organização não ajudava. Se fosse como tradicionalmente era, também não ajudaria. Como ela poderia saber o que poderia contar? Vivera pouco? Ela precisava de respostas. De um manual, bem indexado (um manual com um bom índice é manual bem indexado? Não sabia). Seria algo assim: "Como viver e saber que viveu de verdade - faça o teste e avalie".
Dez anos se passaram.
Agora. Era urgente. Chovia bastante, o trânsito engarrafado, a vida pelo avesso. A reaparição dele. Do sem nome. Leu por aí que pessoas de boa crença não falam no nome do diabo para evitar aproximação com ele. Ele de demônio, nada. Mas era impronunciável. Ela vigiava pensamento, vigiava esquecimento para não deixar escapar qualquer lembrança solta por aí.
Andava perto do mar pra ver se o sal e o sol serviam de descarrego.
Trancou coração para que ele não se anunciasse por aí. Deixava só uma janela aberta pro caso de alguém, cujo nome pudesse ser dito, pudesse se oferecer para entrar.
Agradecia a chuva e pedia para que lavassem sua alma.
Contou os dias para o Ano Novo e pulou ondas.
Contou os dias para o Ano Novo Maia e para o Dia Fora do Tempo e acendeu incensos.
Bebeu vinho e provou novos pratos.
Virou noites e viu nascer dias.
Foi para todas as festas e ...
Nada. Nada.
Nada.
Papel e lápis em mão, escreveu:
"Caras pessoas que cuidam disto aqui.
Peço um tanto de atenção e um bocado de paciência. Os governos cuidam de explicar o que se deve fazer em caso de desastre. Os bombeiros, o que fazer em caso de incêndio. Salva-vidas, o que fazer em caso de afogamento.
Será que vocês"
Amassou e jogou fora.
O caso dela era muito pessoal e particular. E, cada caso é um caso. Os clichês são verdades que a gente tenta não ver. Às vezes. Afinal, toda regra tem lá sua exceção.
Foi para casa. Quando ficasse mais velha, escreveria o livro. Já era mais velha. Aquilo tudo era demais, oras. Resolveu que precisava viver. Ainda poderia morrer por distração.
Pegou o caderno e rascunhou a primeira frase.
"O que fazer em caso de amor"
(Sem pontuação. Amor não avisa se chega com ponto ou com vírgula. A moça não se arriscaria)

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