quinta-feira, 28 de maio de 2009

Detalhes tão pequenos de nós duas ou Penélope e seu primeiro drinque pink


Hoje, pela primeira vez, passados quase dois meses que peguei minha permissão para dirigir, meu pai me mandou ser cordial com alguém no trânsito. Deixei uma moça entrar numa rua e ela buzinou agradecendo.

- Aí você faz assim (som de buzinada leve), porque ela agradeceu. Então, você responde.

- Ah, pai, agora já posso cumprimentar os outros, não é?

Depois que começou a pegar carona comigo todas as manhãs, meu pai só reclamou comigo uma vez. Ops, três vezes. Uma porque passei num buraco. Duas porque freei em cima do carro da frente. Ele pediu pra avisar antes pra que ele não morresse do coração de manhã cedo. Informação importante: O expediente no trabalho é às 8h. Saio de casa no mais tardar às 6h30 (antes era às 6h10). Motivos claros.

A grande piada do dia em que peguei a habilitação é que me curvei (e esqueci do volante) para agradecer a um motorista. Destra por educação (fotos provam que nasci canhota), não poderia dar um sinal de “valeu” com a mão esquerda. Se eu estivesse na Inglaterra, teria sido poupada dos resmungos do meu pai, semelhantes ao do Capitão Nascimento (“Alguém lhe agradeceu? Alguém lhe agradeceu? Então, você não agradece a ninguém, ouviu!”).

Ontem, super segura depois dos elogios dele de que eu estava dirigindo como uma adulta, resolvo não voltar do trabalho para casa e vou com uma amiga espairecer no shopping. Parei no caminho, estacionei muitíssimo bem (tirando o fato de que não alinhei os pneus), vou por um novo percurso e chego lá, toda toda. E vem o momento de estacionar. Quinze minutos depois de muitos pra frente e pra trás, reclamo a falta de pessoas de boa vontade para ajudar. Os céus ouvem minhas preces e surgem senhora e filha super simpáticas para dar aquele help na manobra. Desço do carro, entrego as chaves e ainda peço para colocar de ré na outra vaga. “Porque tirei a carteira agora e não iria saber sair”. A boa ação foi feita pelas duas mulheres, porque se fossem homens iriam dizer gracinhas e não seria boa ação, seria divertimento alheio.

Animadíssima com minha aquisição da Antologia Poética de Cecília Meireles e de uma coletânea de entrevistas da Rolling Stones (apropriada pelo meu pai, fazer o quê se ele tem bom gosto?), sigo para casa de farol aceso, quinta marcha engatada, a 80 Km/h, contente e saltitante (afinal, reduzir marchas ainda é um problema). E, responsavelmente, vou completar o tanque. Penélope não fica de copo pela metade, criando peixe. Muito chique, também só bebe destilado amarelinho.

- Moça, quer checar o radiador e o óleo?
- Só o radiador. Onde abre o capô, moço? (Tenho trauma porque vi um dia um celta - ou seria um fiesta, não lembro mais-, a fumaçar e a queimar mão de gente porque o deixaram sem água. E olhe que ali havia uma setinha que não existe no meu mostrador!!! Pelo menos que eu tenha percebido). Detalhe: aí, o frentista percebeu meu analfabetismo funcional*.

- Tem que colocar um líquido rosa, porque já baixou.
- Ta certo.
- É R$18,50.

E lá vou eu. Feliz, comemorando com Penélope sua evolução de destilados amarelos para drinques coloridos. Toda orgulhosa, conto a meu pai dos acontecidos.

Bem, o resto. Ele abandonou a versão Capitão Nascimento e foi meio House. Terminei a noite lendo o manual do carro*.

* Linguagem automobilística é muito complicada, com desenhos estranhos e palavras esquisitas. O que danado é um relé??? Só conheço ralé. Todo analfabeto funcional tem vergonha de se acusar. Eu já tinha derrubado a máscara na hora em que falei que não sabia abrir o capô. Não iria ligar pro meu pra perguntar nada. Veja só, Cosma era uma mulher forte, mulata robusta, que votava na seção em que fui mesária por quatro anos. No início, ela aceitava melar o dedão e carimbar no lugar da assinatura. Na última vez dos meus préstimos lá, Cosma já copiava o nome dela. No lugar do dedão, desenhava letra por letra as palavras que estavam abaixo. Bem, Cosma é minha desculpa. Mal ajambrada, mas, enfim.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Você não serve pra mim



Aviso: Dedicado aos que me chamam de chata. A melhor forma de exorcizar um trauma parece que é assumi-lo.


Deve ter sido culpa do meu pai. Quem mandou nascer numa cidade que fica a 12 horas de carro de onde moramos? A cada viagem ao Crato, além dos travesseiros na parte de trás para mim e minha irmã, outra parte do ritual era colocar duas cassetes: uma de Beatles e Rolling Stones, outra de Roberto Carlos. Engano. Ainda havia a de Maria Bethânia interpretando RC. Nunca fui com a cara de RC. Com aqueles cabelos estranhos, aquele amontoado de fãs, as músicas recentes sem força, sem raiva, sem intensidade. Branco e azul monótonos. Chico Buarque é muito legal e bonito, mas prefiro a polêmica inconseqüente de Caetano. Ou isto ou aquilo. Precisei me render. RC é responsável pela maior parte da trilha sonora da minha vida. Não por escolha minha. É involuntário. Veio no sangue.

A percepção disso veio aos poucos. Primeiro, quando discuti a preferência de um amigo meu por RC. Notei que sabia a maioria das letras. Depois, naqueles momentos de crise. Só surgia Fera Ferida na cabeça. Em dias de TPM, Pode vir quente que estou fervendo, Você não serve pra mim, Se você pensa. Problemas por causa dos meus impulsos de ariana: Sua estupidez. Embora isso tudo, RC não representava para mim nada que correspondesse a meus critérios (parcos) musicais, muito menos de estilo. Não supria minha advertência chatíssima e preconceituosa erguida contra tudo que tocasse muito em rádios, bares, cenas de novela, etc.

Afinal, os principais caminhos para o nascimento do meu abuso trucidatório e impiedoso contra qualquer expressão cultural é me deparar com o produto em perfis de orkut, trilhas sonoras de novela da Globo ou achar bobagens semânticas na composição. Exemplos recentes (e óbvios até demais): a música que diz “Numa noite estranha, a gente se estranha” e aquela outra que cita passo a passo como mulheres imaturas ainda se acham adolescentes inseguras e ficam repetindo numa monotonia sem fim “Coisas que eu sei”. A primeira pelo menos me arranca risos, a outra me faz suspirar de impaciência. "Pintei meu cabelo, me valorizei" é mais honesto, portanto, menos ruim.

O que dizer, então, de RC? Unanimidade maior entre as grandes unanimidades nacionais da MPB? Estampado em pôster na casa da tia da minha mãe, amor maior de Teresa, a maluquinha que trabalha lá em casa, autor dos versos enviados em bilhetinhos amorosos por um professor da faculdade para suas namoradas? Preciso dizer a meu abuso que tentei. Tentei bastante. Mas, preciso curvar-me ao rei. É, Roberto, é a você que recorro várias vezes em momentos essenciais da minha existência. Ou nem tão essenciais assim. Só não espere que eu encerre o texto dizendo “O importante é que emoções eu vivi”. Tá. Devo-lhe essa concessão. É piegas. Só que é preciso baixar a guarda de vez em quando. Manter sempre os muros da torre levantados é um gasto danado de energia. Ainda mais quando determinadas portas permanecem sempre abertas. Mil perdões, RC, você serve, e como, pra mim.

Uma das favoritas:

Se Você Pensa
Roberto Carlos
Composição: Roberto Carlos / Erasmo Carlos

Se você pensa que vai
Fazer de mim
O que faz com todo mundo
Que te ama
Acho bom saber
Que prá ficar comigo
Vai ter que mudar...

Daqui prá frente
Tudo vai ser diferente
Você tem que aprender
A ser gente
Seu orgulho não vale
Nada! Nada!...

Você tem a vida inteira
Prá viver
E saber o que é bom
E o que é ruim
É melhor pensar depressa
E escolher antes do fim...

Você não sabe
E nunca procurou saber
Que quando a gente ama
Prá valer
Bom é ser feliz e mais
Nada! Nada!...

Se você pensa que vai
Fazer de mim
O que faz com todo mundo
Que te ama
Acho bom saber
Que prá ficar comigo
Vai ter que mudar...

Daqui prá frente
Tudo vai ser diferente
Você tem que aprender
A ser gente
Seu orgulho não vale
Nada! Nada!...

Você não sabe
E nunca procurou saber
Que quando a gente ama
Prá valer
Bom é ser feliz e mais
Nada! Nada!...

Daqui prá frente
Tudo vai ser diferente
Você tem que aprender
A ser gente
Seu orgulho não vale
Nada! Nada!...

Você não sabe
E nunca procurou saber
Que quando a gente ama
Prá valer
Bom é ser feliz e mais
Nada! Nada!...

terça-feira, 26 de maio de 2009

As soon as

E se não houvesse horários? Se a gente pudesse sair correndo na hora que as pernas começassem a se debater histericamente. Correr adiantaria? E se a gente pudesse ouvir Head On, do Jesus and May Chain, bem alto, seguido de Sacrifice do Motorhead, bem alto, aos pulos. Haveria pulo para dar conta? Haveria corpo para expandir até a energia ir toda embora? Corpo de gente é coisa rígida, seca, inviável para certas manobras. Bem que eu queria ser a Mulher Elástica.

E se houvesse uma lei que liberasse todos para banhos de chuva em dias de semi-tempestade? É que no Recife e em Olinda não existem tempestades. Só toró. Haveria tempo que bastasse?

Subverter os prazos. O tempo engole a gente e a gente só percebe quando já foi tempo demais. Abre os olhos, menino! Presta atenção, menina. Anda, anda, anda. Já é quase junho. Já é bem fim do ano.
Lista de músicas preferidas.
1) Moon River
2) Head On

domingo, 24 de maio de 2009

Co-incidiências

Porque às vezes é muito bom ouvir rádio. Melhor que ativar ordem aleatória no Media Player. A surpresa é bem maior.
E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
Quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
Quando eu estiver fogo
Suavemente se encaixe
E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti, dentro de ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti
E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
Quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
Quando eu estiver fogo
Suavemente se encaixe
E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti, dentro de ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti
(Nando Reis e Samuel Rosa)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Futuro do Pretérito

Lili não sabia patavinas do que faria com aquele desafio ridículo. Resolveu escrever a um velho amigo com quem havia tido briga monumental, uns tempos antes. Ele era perito em charadas, enigmas e quetais. Mas, como poderia convencê-lo de que ela realmente estava arrependida das grosserias que cometera? Por ser um velho amigo, guardava modos estranhos, ranzinzas e carrancudos. Era um ser de chamar atenção. Possuía um buraco, uma depressão, no espaço que ficava entre o peito e o estômago. Será que ele era meio-irmão do homem de lata do Mágico de Oz? E aquele espaço era na verdade alguma porta de entrada para algum mecanismo auspiciosamente elaborado? Ela começou a pensar na carta que escreveria para argumentar a favor da ajuda do tal amigo na árdua missão.


“Se um dia a gente fosse se encontrar pra falar besteira, para desviar a atenção do que é sério e, por isso, bem menos importante, seria assim. Eu iria a sua direção. Você me abraçaria, eu grudaria meu rosto no seu colo. Você passaria uma mão na altura dos meus ombros e com a outra alisaria meu cabelo e beijaria minha cabeça. A essa altura, eu já estaria chorando. Aí você diria que não tem mais o porquê de tanto choro, as tarefas difíceis vão se resolver logo depois que eu descansar. Feito passe de mágica. Aí, de acordo com minha imaginação, é nesta hora em que me afasto. Digo que sou manteiga derretida e pronto. Que choro por tudo. Para tentar disfarçar a importância do encontro. Mas, se você acha tudo diferente e desprovido de lógica, invente outro encontro mais interessante, com direito a lista de passatempos e de brincadeiras...”

terça-feira, 19 de maio de 2009

Coisas de ontem

1)
E estava lá no jornal. Os dois amigos. De um lado, a menina que estava doente e se curou. Do outro, o que estava sadio e foi morto. No mesmo dia, quase na mesma página. A morte onde era vida e a vida onde se temia tanto a morte. A gente nunca sabe o que está por vir. De repente, muda tudo. Às vezes, volta para o mesmo lugar, outras segue por caminhos que nunca esperamos.
Durante o caminho, a gente cria artimanhas para brincar com a sorte. Repete o mesmo cacoete para ver se vinga. Se o destino ajuda, se a fortuna sorri pra gente. Gosto do nunca porque o nunca, nunca é. Ou então o “por um bom tempo”. Que se resolve em menos de um mês. Em 15 dias. Uma semana.

2)
Sentimento quando é bom, de puro sangue, não precisa se explicar em palavras. Na verdade, usa as palavras de desculpa. Para não deixar o silêncio se tornar reinante. Já se viu ter que explicar o que se sente? Então era razão. Porque se não fosse assim qual sentido da expressão “razão de ser”? Razão é algo tão assim assado que para ser tem que se explicar, já nasce se desculpando, pedindo licença, com justificativa assinada e protocolada.

É que nem procurar no dicionário significado de epifania. Deixa lá o Aurélio ter a dele e a Clarice com a dela. Que coisa!

Dias de chuva possuem contratempos, mas só na chuva tem arco-íris. E quem nunca tentou passar debaixo não sabe o que é alegria
.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Tarefas para Lili

As senhoras estranhas deixaram um bilhete, encontrado no comecinho da manhã por Lili. A garota, um tanto quanto inquieta, achou que deveria haver um exército de meninas parecidas com ela. Todas lilis. Todas inquietas e avexadas. Todas completadores de frases dos pensamentos dos outros. Ela seriam tantas e tão falantes que só com o barulho de suas vozes venceriam as três esquisitas.
O pedaço de papel dizia assim;
"Antes de qualquer coisa, senhorita, bom dia, viu! Garantimos que você se ocupará bastante e conseguirá diminuir a quantidade de minhocas que habitam essa cabecinha. Vamos lá. Como primeira prova, você terá que descobrir o grande segredo das exceções das regras. Vamos ver como você se comporta. Dica importante. Seja estratégica: primeiro, descubra o segredo, depois, o que queremos dele. Pense, menina, pense"

Cantoria

Um dia ainda pego o CD do meu pai.

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É a luz do sol que incandeia
Sereia de além-mar
Clara como o clarão do dia
Marejou meu olhar
Olho d'água, beira de rio
Vento vela a bailar Barcarola do São Francisco
Me leve para amar
Eu, em sonho um beija-flor
Rasgando tardes vou buscar,
Em outro céu,
Noite longe, noite longe
Que ficou em mim
Quero lembrar
Era um domingo de lua
Quando deixei Jatobá
Era, quem sabe, esperança
Indo a outro lugar Barcarola do São Francisco
Veleja agora no mar Sem leme, mapa ou tesouro
De prata o luar

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Lua cheia amarelada admirada do Carmo, em quase completa solitude

Para todo sentimento que nasce é preciso bastante atenção. Muito, muito carinho. Bastante cuidado. E uma bela dose de inteligência. Ou melhor, de generosidade. Porque se pensarmos um pouquinho, sabe mais quem sabe se dar.
O exercício magnífico de doação de si mesmo exige uma série de preparos. Racionais e discretos. Discretos porque se a estratégia é descoberta, o encanto vai embora. Ah, há que se buscar a razão para o encanto. A razão do encanto. Nada de atos violentos de jogar-se. O magnífico surge aos poucos, cativa aos montes por vir assim, devagar. Tal qual movimento de bicho que dá o bote quando menos se espera.
(em construção)

domingo, 10 de maio de 2009

O Monstro do SE

E se não houvesse sonhos que parecem dizer coisas? E se não houvesse músicas certas tocadas nas horas erradas? E se não houvesse coincidências? E se não existissem sinais mágicos do universo? E se não existisse tanta impulsividade? E se todo o mundo se resolvesse num único segundo e depois fôssemos viver de festa? Seria aproveitada a festa? E se toda vez que procurássemos algo realmente achássemos? E se toda vez que não estivéssemos olhando por nada, nada fosse o que aparecesse?
E se a Argentina ou a Espanha fossem perto uma da outra e na esquina da minha casa? A Itália também, não seria nada mal. E se eu soubesse exatamente agora o que fazer? Se surgisse um plano na minha frente?
Se a vida não viesse assim aos montes, aos tantos, o tempo inteiro. Se a gente resistisse ao convite e não fosse. Se o baile parecesse meio cheio, meio chato, meio sem graça. E se chovesse agora e a lua cheia sorrisse com o sorriso assustador do gato de Alice? Mas eu nem gosto daquele conto. E se eu fugisse e ninguém me achasse? E se a gente esquecesse tudo? E voltasse pro começo, sem casa, sem muro, sem crise financeira.
A gente ainda seria a gente? Se todos os se fossem diferentes. E a gente escolhe, assim, sem saber, sem ter opção clara? E segue e segue e pronto? E vai gente, vem gente, que fica da gente? Desta gente, daquela e da outra ali? É como aquele baile do filme, em que o tempo passa e ninguém fala. Só dança.
É quase clichê, hit de rádio. Mas é bonito. Ou melhor: e é bonito.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O ovo e eu ou como nasce um trauma


Nos programas de televisão, a cozinha é um lugar idílico. Nem o avental se suja. Na vida, óbvio, não é assim.


Bem, quando dou sorte, sujo apenas minha roupa. Pela tradição, sempre sobra bolo no meu cabelo. Não sei como isso acontece, mas creio que é porque a pia da minha casa não é adaptada a pessoas com 1,69m de altura. Minha coluna que o diga. Não uso cabelo longo, nunca tive cabelo comprido em toda a vida.


(Mentira: dos 16 aos 17 anos, usei cabelo um pouco além do ombro, bem pouco. Período em que estudava pro vestibular e sonhava ser hippie ou rebelde ou as duas coisas. Por isso, desenhava gatos pretos e luas redondas na calça jeans, pintava a bolsa com tinta guache e não ia a salão - eu mesma cortava o meu cabelo, o que me rendeu até mesmo novas amizades, iniciadas assim:


Menino desconhecido do colégio - Ei, que foi isso no teu cabelo?

Eu - Um espirro, aí passaram direto com a tesoura na minha franja

Menino desconhecido - Oh, sério, faz mais isso não. Ficou estranho pra caramba.


Enfim, assim que passei no vestibular, fui no salão e cortei o cabelo na orelha).


Bem, mais uma vez, havia bolo na minha franja. Existem coisas que são sempre recorrentes. Bolo na franja quando cozinho e sorvete na ponta do nariz quando peço três bolas de uma vez no casquinho.


É tradição minha mãe demonstrar um certo pavor quando resolvo mostrar ao mundo meus dotes culinários. Ela costuma sabotar meus planos de dominação da copa da casa. Isso porque minha ficha criminal possui alguns itens comuns à maioria das pessoas: quase destruir o liquidificador por duas vezes, explodir o microondas, derrubar massa de bolo no teto. Sim, eu sei que existe lei da gravidade mas foi porque, ah, depois explico.


Lá vai eu, garota de vinte e cinco anos, solteira, em plena sexta-feira de lua redondamente cheia, tomar por decisão ficar em casa e cozinhar. Um bolo de cenoura. Havia chegado do trabalho, depois de ter viajado para o Interior. Mas, uma pessoa determinada não desiste fácil. Como aprendi a lição da última vez, separei um recipiente para por os ingredientes, misturá-los, antes de jogar tudo no liquidificador. Descobri esse truque fabuloso depois de despejar várias xícaras de trigo, açúcar, ovos e cenouras no liquidificador, ver uma fumaça sair e deixar minha mãe perto do desespero.


Em seguida, antes de qualquer coisa, ralei as cenouras do jeito correto, sem ser em rodelas. Seis cenouras!! Vamos lá, relembrar os tempos em que se juntavam todas as mulheres da família na casa da minha avó para ralar côco pras comidas de São João. Imitei quase igualzinho. Peguei o computador e fui em busca da receita. Tava tudo lindo, ainda limpo e organizado. Até o ovo.


O ovo. Podre. Que eu não vi que estava podre. Achei que era a luz. Estava cinza porque a luz podia estar fraca, não é? Aí subiu o cheiro. Terrível. Depois de pingar umas gotas na pia. Cair um pouco em cima do açúcar. Dentro do recipiente! SOS! SOS! Enquanto eu estava lá, prostrada frente à tragédia, impassível diante do caos instalado, a voz da experiência me manda tirar com a colher o que caiu. SOS! SOS! Tocar naquilo com a colher. A minha mão. Chegar perto daquele monstro. SOS! SOS!


O primeiro ovo podre da minha vida. Afinal, embora não tenha sido criada como futura patricinha, não chamo palavrões (a não ser algumas interjeições de raiva aprendidas na época de velejadora), não sei arrotar e tenho bastante nojo de um monte de coisa. Tanto que meu paladar é restrito e não como coisas de consistência estranha. Aí me aparece um ovo estragado. Um arrepio. Um choro. Um desespero. De novo, de novo, e de novo.


E agora volta. Só de pensar. Nunca enterrei ovo para jogar em ninguém. Só levei ovo na cabeça da minha irmã, em Itamaracá, há uns dez anos. Também nunca fui a bailarina de Chico Buarque. Até hoje, caio muito. Meu joelho vive com hematomas, as roupas novas sempre atraem vinho ou gordura de queijo, tive caxumba, sarampo, cárie. Mas nada na vida havia me preparado para aquele ovo. Não poderia imaginar que era algo do tipo: cinza, gosmento, com o pior odor do mundo.


Vai ver que por isso o personagem mais chato de Alice No País das Maravilhas é um ovo. Que na música dos Dia das Mães, o avental suja de ovo. É pelo ovo podre que gritam "Golou o ovo" quando erram no esconde-esconde. É o ovo que aumenta o colesterol. Devia existir somente a clara, sem a gema. Deve ser ela que estraga tudo, com essa mania de querer estar no centro, gigante e amarelada, miniatura de lua cheia, toda pretensiosa. Por causa do ovo, tenho trauma de quando meu pai fazia meu mingau. Ele tentava me ludibriar. Só que eu percebia.


Ainda bem que começou a chover.

(Porque aí posso terminar de escrever algo que não tem nada a ver com minha ingênua falta de filtro)


P.S.: registro - o teclado do pc está descolando. Como pode?

terça-feira, 5 de maio de 2009

O peso

Às vezes, em raríssimas vezes, um dia vale mais que um mês, que um ano. Existem dias que parecem o juízo final, quando tudo vem à tona numa única hora. E é impressionante como cabe tudo no mesmo tempo. Tem vezes que não são nem dias. São uns tempos estranhos. Quando qualquer coisa que se faça parece vir acompanhada pela sombra do “Se”. E o “Se”, na verdade, é um fantasma cheio de dentes de tubarão, com asas pequenas como as de morcego e um único olho gigante no meio do peito. Ele não enxerga com coração, ele tem olho no lugar do coração. O “Se” é o nome de um monstro horrendo. Que assombra nos sonhos e deixa o medo a nos perseguir quando estamos acordados.

Enquanto aguardava as ordens que precisava cumprir, Lili ficou entediada e caiu no sono. Num sono profundo com um sonho bem real. Ela viu uma fada de cabelos morenos, elegante, alta e acolhedora. A fada disse para que ela procurasse não sei quem. Mal-humorada por causa da situação em que se encontrava, Lili acordou e jogou para o alto um pequeno pedaço de papel com o recado do sonho escrito. Porém, Lili agiu sem muito pensar. Afinal, por que ela não escreveu uma pergunta no lugar de uma afirmação? De que adianta dizer: sonhei que uma fada bonita me dava um recado para fazer não sei quê. Ela deveria ter redigido: por que será que a fada bonita me mandou fazer não sei quê. Por que deveria ter procurado fulano?

Ficou sem resposta. E parada no mesmo lugar.

“Ah, narrador, peraí. Toda vez é isso. Sonho um monte de coisa e demoro três séculos para entender. E, na maioria das vezes, vejo que fiz tudo errado. O monstro do Se sempre ganha”, disse Lili, olhando para cima com um misto de desdém e petulância
.